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28/08/2015 - Iniciativa celebra o saber das crianças indígenas e quilombolas

Dois dias atrás

“L” de leão, “z” de zebra. A associação de palavras era comum na hora de ensinar o alfabeto para as crianças de Mondongo, pequena comunidade de várzea nos arredores do Rio Amazonas, no Pará, apesar de os pequenos estudantes só saberem da existência do rei da selva e sua presa bicolor pelas páginas dos livros didáticos. O mesmo ocorria com as demais palavras: “u” era uva, “m”, maçã, e “q” era queijo, alimentos escassos ou desconhecidos no seu repertório alimentar.

O distanciamento entre o processo de ensino e a realidade infantil local foi um incentivo para que a pesquisadora e artista plástica Marie Ange Bordas, coordenadora do projeto Tecendo Saberes, decidisse criar um novo alfabeto, à moda local. Para isso, contou com a colaboração ativa de crianças e professores da região, que ajudaram a enumerar, desenhar e fotografar objetos, animais, frutas e outros elementos presentes e abundantes na vida de lá.

Assim, um alfabeto inteirinho foi adaptado: zebra virou zangão, queijo virou quiabo, maçã virou marajá (uma frutinha típica bastante apreciada). Passou a abarcar palavras como acari, capivara, horta, jerimum, onça-pintada, poraquê, vaga-lume, entre tantas outras familiares à comunidade. “Não fazia sentido um lugar como Mondongo, de clima equatorial, no Baixo Amazonas, e tão rico em elementos, usar palavras importadas das grandes cidades”, observou Marie.

Na visão de João Neto, secretário de Educação de Óbidos (PA), município onde estão localizadas quatro das comunidades com as quais o projeto Tecendo Saberes teve contato, não se tratou de uma simples pesquisa, pois houve o cuidado em se integrar à vida local e compartilhar olhares. “Marie Ange Bordas criou um diálogo com as crianças da região e as incentivou a contarem a própria história”, destacou o secretário, sobre a importância da intervenção. “Ela deu voz à criança e ao jovem, fazendo-o pensar e refletir sobre a riqueza da sua comunidade.”

A sensibilidade da iniciativa de criar um alfabeto próprio não passou despercebida. Muito pelo contrário: acabou sendo adotada por outras comunidades do Baixo Amazonas. “O problema do ensino nestes lugares é que quase todo o material didático é produzido em cidades do Sudeste, onde a realidade é completamente diferente”, esclarece Neto. “O alfabeto e todo o material produzido pelo projeto são adotados até hoje, gerando um envolvimento muito maior, pois os moradores sentem-se valorizados ao encontrar referências de seu cotidiano nos livros.”

Saberes infantis
Além da adaptação do alfabeto de Mondongo, outras ações estão sob o guarda-chuva do Tecendo Saberes, que procura não apenas registrar a cultura local, como difundir e celebrar o saber das crianças da região Norte. Por meio de oficinas, cursos, palestras, encontros com contadores de histórias, o projeto promove intercâmbios entre as culturas quilombola, indígena e das grandes cidades. É desta forma, por exemplo, que as crianças que frequentam bibliotecas em São Paulo descobrem que um pequeno animal conhecido como tatu foi o responsável pela criação da noite, segundo a tradição dos índios Huni Kui, a população indígena mais numerosa do Acre.

Os ricos frutos dessa interação podem ser apreciados nos livros lançados em fevereiro de 2015, em Óbidos, pelo projeto Tecendo Saberes em parceria com oInstituto Catitu, com patrocínio do Programa Petrobrás Cultural: "Manual das Crianças do Baixo Amazonas", resultado da convivência com crianças de cinco comunidades quilombolas no Pará, e "Manual das Crianças Huni Kui", uma edição bilíngue, com versão nos idiomas português e Hãtxa Kui, cuja comunidade também ganhou abecedário, com letras que só existem na sua língua: como “ts” de tsuna (joão-de-barro), “tx”, de txashu (veado), e “sh”, de shashu (canoa).

Segundo relatou Marie, ter visto a própria cultura em um livro foi motivo de orgulho para essas crianças e também para seus pais. “O que me deixou mais emocionada foi a reação dos mais velhos. Uma senhora, ao ver a vida da sua comunidade no livro, chegou a dizer ‘agora eu já posso morrer, está tudo aqui’”, relembra, fazendo alusão à tradição dos mais antigos, de transmitir seus ensinamentos oralmente.

O início dessa trajetória remonta a 2009, quando a artista plástica publicou os livros "Histórias da Cazumbinha" e "Manual da Criança Caiçara", que abordam temas imateriais, como lendas, crenças e forma de brincar, procurando registrar e valorizar seus saberes e fazeres. Motivada pelo olhar infantil, a metodologia já era colaborativa: crianças, professores e moradores da região compartilham sua história, criam desenhos, contam “causos”.


ENTREVISTA:

Confira os principais trechos da conversa com a pesquisadora e artista plástica Marie Ange Bordas, nos quais ela comenta sobre as diferenças entre a educação infantil nas grandes cidades e nas comunidades retratadas no projeto Tecendo Saberes:

Tempo de brincar
"A maior diferença é o que chamamos de agenciamento do tempo das crianças. Nas grandes cidades, toda a rotina dos filhos é pautada pelos pais, que decidem a hora de ir à escola, de brincar, de fazer exercícios na academia, enfim, todo o tempo da criançada é pautado por seus tutores. Já nas comunidades quilombolas ou indígenas, isso não existe. As crianças saem para brincar e os pais os deixam livres. Claro que têm obrigações como caçar, ir à escola, mas, em geral, a educação é completamente diferente e mais livre. Não deixa de ser parecida com a nossa própria educação, até algumas décadas atrás."

Diferenças e semelhanças
"Muitas crianças expressaram que o pessoal da cidade pensa que na Amazônia só existem bichos e floresta. Ficaram orgulhosos porque sabiam que os vídeos, fotos, ilustrações e textos que produziram chegariam às crianças das grandes cidades. Diziam coisas como ‘agora vão ver que existe gente aqui também!’. De maneira geral, as pessoas das regiões ribeirinhas estão mais próximas da nossa realidade do que imaginamos: vão para a escola, ajudam nas tarefas domésticas, brincam..."

Percepção de mundo
"Eles têm total consciência de como vivem os meninos e as meninas de São Paulo, e o interessante é que a percepção deles é bem parecida com a realidade, mesmo que nunca tenham conhecido as grandes cidades. Um dos meninos de uma pequena comunidade quilombola chegou a declarar num áudio que o livro ajudaria o pessoal de São Paulo a entender que ficavam tempo demais na frente da TV e de seus videogames. Ele comparou a situação com a sua própria realidade, por ele considerada muito mais rica: ‘a gente não tem nada disso, mas produz os próprios brinquedos’. Eles próprios imaginam que lá são mais livres, mais imaginativos."

Integração
"Elas são totalmente integradas às comunidades em que nasceram e vivem. Recebem os ensinamentos dos pais, mas têm autonomia para pensar o próprio destino. Entram na mata para caçar ou conhecer as plantas e os bichos locais, sobem nas árvores com destreza, usam facões e outros objetos que nas grandes cidades seriam proibidos a uma criança, confeccionam os próprios brinquedos, sabem os nomes dos peixes, como se faz urucum para pintar a pele, os tipos de plantas venenosas ou que curam. São extremamente conscientes de sua própria riqueza cultural."

O que você provavelmente não sabia sobre...

...as crianças Huni Kui:
- São batizadas com jenipapo e se pintam de urucum
- Comem mingau de banana pela manhã
- Entram na floresta somente após pedir permissão aos espíritos
- Ouvem com atenção aos mais velhos
- Sabem andar na mata sem se perder

...as crianças do Baixo Amazonas:
- Quase tudo da natureza (palha, pau, folhas de bananeira etc.) vira brinquedo
- Periquitos, filhotes de capivara, galos, macacos e outros bichos da mata compartilham com cães e gatos o carinho das crianças, virando até animais de estimação
- Peteca, subir em árvore, queimada e pular na água são algumas das brincadeiras mais populares
- Pira é como as crianças chamam a brincadeira de pega-pega
- Dormir em redes é bem comum


Fonte:
Por Kathia Gomes, do Promenino, com Cidade Escola Aprendiz
Link: http://promenino.org.br/noticias/reportagens/iniciativa-celebra-o-saber-das-criancas-indigenas-e-quilombolas
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