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11/11/2016 - Conhecemos as jovens mães privadas de liberdade da Fundação CASA

09/11/2016
 
 
Passamos a manhã com 13 jovens grávidas e mães que cumprem medida socioeducativa na única unidade do estado de São Paulo especializada para recebê-las.


Era manhã de uma quinta-feira quente. Cheguei na Unidade Feminina de Internação Chiquinha Gonzaga, da Fundação CASA, por volta das dez horas. Ao cruzar os grandes e pesados portões de ferro, fui acompanhada por uma das assessoras do Projeto Guri, que completou em outubro passado 21 anos de existência. Entre outras ações, o programa realiza uma oficina de musicalização voltada a mães e bebês da única ala do estado de São Paulo responsável por atender mulheres com idades entre 12 e 21 anos, que cumprem medidas socioeducativas. O único respaldo do projeto vem do Ministério da Cultura. Por todo lado das paredes de cor bege, placas proibiam o uso de celular.

O PAMI (Programa de Atendimento Materno Infantil da Casa Chiquinha Gonzaga) compreende uma grande construção. Essa, distancia-se por extensas porções de grama da outra parte da unidade – na qual se encontra o número crescente de 110 meninas infratoras primárias, isto é, que infringiram a Lei pela primeira vez na vida. Embora costumeiramente nomeado como “casa”, o espaço é dificilmente entendido como tal pelas meninas-mulheres que ali se encontram. Localizado no bairro da Mooca, Zona Leste de São Paulo, o local é subdividido em dois dormitórios. Dentro desses quartos, as camas são alternadas entre berços e desconfortáveis cadeiras plásticas ou de escritórios, nas quais as jovens se acomodam para amamentar seus filhos. Além disso, o ambiente conta com uma cozinha, a qual possui anexado um refeitório, banheiros, fraldários e uma sala.

Assim que entrei em na ala, fui recebida pelos olhares curiosos das mães que já sabiam da minha visita. O aviso prévio foi dado anteriormente pelo diretor da unidade, Ezeilton Rodrigues, o qual elas se referem ironicamente como “Senhor Prefeito”. Quando cheguei, a aula já havia começado. Adolescentes grávidas e mães – em sua esmagadora maioria negras – entoavam, com seus pequenos no colo, a tradicional cantiga “Abadá da Capoeira”. Com o refrão “Paranauê! Paranuê, Paraná”, a canção remonta à liberdade que os escravos sentiam ao nadar nas águas do Rio Paraná, onde estariam seguros e não seriam alvo de feitores e capitães do mato. Ao lado de uma grande prateleira colorida, recheada com brinquedos doados pela Mattel, as garotas se sentavam em círculo sobre um tapete colorido de EVA. Todas pareciam concentradas nas ações da educadora musical Thatiana Furtado, que acompanha as oficinas desde a criação, em agosto de 2015.

As aulas foram idealizadas pela pedagoga inglesa Katherine Zeserson, à frente da ONG Paul Hamlyn Foundation Inspire-Music, que já havia implantado programas de música com mães e bebês no norte da Inglaterra. Na capital paulista, as oficinas passaram a ser coordenadas por Thati, como prefere ser chamada. “Foi ela [Katherine] quem deu o pontapé na iniciativa. Quando veio ao Brasil, atendeu como consultora dos programas de música da Secretaria do Estado, entre eles o [Projeto] Guri e as Fábricas de Cultura”, comenta a educadora. “Nesse momento, quando ela se deparou com essas jovens mães, enxergou a possibilidade de construir uma ação análoga a que desenvolvia em sua terra natal.”


A melodia da didática

As aulas semanais são divididas em quatro etapas. A primeira, “Canto de Entrada”, é composta por atividades que proporcionam a interação entre mãe e bebê através da musicalização, com enfoque nos pequenos. A segunda, conhecida pelas meninas como “Banda da Família” – que antes recebia o nome de “Banda do Bebê” – permite às mães terem o contato com instrumentos de percussão. “De uns tempos para cá, elas têm se interessado bastante em aprender a tocar, e não marcar somente a pulsação das músicas que cantamos”, elucida a pedagoga.

Já a terceira etapa compreende atividades maternas de locomoção com as crianças. Realizada com cirandas e marchas do repertório de Thati, esta passagem da oficina incentiva a coordenação e percepção auditiva dos bebês. “Compilo músicas infantis, algumas da banda ‘Palavra Cantada’, outras do folclore brasileiro, além de grandes clássicos da MPB. Procuro variar sempre”, conta. Para Daiane*, de 15 anos, grávida de 6 meses, que está lá há 5, esta é a parte mais divertida. “Nós dançamos com os pequenos, brincamos com eles. No começo da aula, passamos a maioria do tempo sentadas. O final é mais agitado, eu gosto mais.”

A educadora encerra as atividades com um relaxamento para os pequenos se acalmarem e então adormecerem. Os últimos 20 minutos da aula fazem parte da “Hora da Mamãe”, período destinado somente a elas, mas que também é aproveitado pelas crianças mais velhas. Neste semestre, as garotas estão construindo instrumentos que farão parte do projeto Parque Sonoro. Por meio desta proposta, as mães montaram com as próprias mãos chocalhos, que serão expostos na área externa da Fundação. Valendo-se de garrafas plásticas, grãos de arroz e feijão, as jovens exploram a sonoridade e os timbres dos materiais utilizados durante a atividade. Em momentos anteriores, as jovens usaram este mesmo intervalo para debater sobre o papel da mulher no mundo, no quanto precisaram abrir mão do “ser mulher” para “ser mãe”.

Há dez anos desenvolvendo projetos na Fundação, Thatiana acredita ser quase palpável a diferença entre o relacionamento das mães com os bebês após a implantação das oficinas de musicalização. “É muito interessante ver como a música tem o poder de criar esse vínculo materno, porque ninguém nasce sabendo ser mãe, a gente só aprende sendo. No começo, eu via que muitas mães tinham resistência com os próprios filhos, não sei o porquê, mas até preferiam brincar com os outros bebês.”

E também acredita que as meninas já estão colhendo os frutos da interação: “Desde o começo, percebi uma aceitação muito fácil entre elas, e não achava que fosse assim, porque geralmente não é – há um momento de estranhamento. Quando começamos a cantar, na primeira aula, foi muito instantâneo a aproximação, parecia mágica. Hoje, as canções infantis apresentadas na aula já fazem parte do cotidiano de todas elas, desde a hora de fazer a papinha, trocar a fralda ou tomar banho.”


As meninas-mães

Ao falar sobre o curso, Daiane* é direta. Com Rodolfo* no colo, filho de outra interna, ela conta: “Quando tiver meu filho, vou saber brincar com ele. As mães gostam bastante porque a musicalização é um dos únicos momentos que elas têm para ficar com os filhos. Aqui é sempre muito corrido para a maioria, muitas fazem curso, outras vão à aula, às vezes, os dois juntos.” Sobre música, transparece um tímido sorriso: “Gosto de todo tipo de música, mas principalmente sertanejo. Ouvia bastante pagode também, Sorriso Maroto.”

O SENAC São Paulo estabeleceu, em Julho de 2015, uma parceria com a Fundação CASA que permite às internas a possibilidade de frequentarem cursos profissionalizantes em áreas como: Estética (cabeleireiro e manicure), administração, comunicação, artes, informática, hotelaria e turismo. Todos têm uma carga horária de 74 horas e obedecem a um ciclo de três meses.

Quando colocar o pé para fora dos grandes e pesados portões de ferro, ao lado do primogênito, a primeira atitude de Daiane* será dar “um gritão de liberdade e ir para casa”. A longo prazo, pretende já ter terminado os estudos e procurar um emprego – na Fundação, a interna cursa o nono ano do Ensino Fundamental. Ela ainda sonha em ser bióloga, muito provavelmente marinha. “Adoro ir à praia. Já visitei Ubatuba, Enseada, Itanhaém e Trindade”. Na hora de ser fotografada, me perguntou se poderia mostrar o rosto. Sem graça, afirmei que não. O Estatuto da Criança e do Adolescente assegura, como medida protetiva, a não exposição de jovens que estão privados de liberdade. Acredito que gostaria de mostrar os traços de sua face, que a cada movimento dela, era encoberta por longos cachos negros bem delineados. Daiane sente falta da vida do lado de fora, de comer de garfo, porque lá dentro, como medida protetiva, só pode fazer as refeições de colher. Sente falta da família, da mãe, pai, avô, dos quais recebe visitas regulares aos domingos. No entanto, não tem saudade do que fazia do outro lado dos portões de ferro, “do que me trouxe para cá”.

Perante a Lei, Silvia*, de 18 anos, cumpre medida socioeducativa há 9 meses. Praticou algum ato infracional na véspera de alcançar a maioridade. Neste caso, dependendo da gravidade do delito, pode permanecer na Fundação CASA até os 21 anos. Três anos é o tempo máximo de reclusão prevista para um jovem. Quando pariu Fernando*, de 2 meses, já se encontrava privada do convívio social. Por estar de licença-maternidade – que assim como aqui fora tem duração de 4 meses – a moça também cuida dos outros pequenos durante a manhã e tarde, período em que as outras mães estudam. Desde que começou a frequentar as oficinas de musicalização, a interna canta os versos evangélicos da música “Melodia de Amor”, de Bruna Karla, para seu pequeno adormecer.

A mãe, que cursa o sexto ano do Ensino Fundamental, conta as principais diferenças no comportamento do filho depois de passarem a frequentar a oficina: “A música deixa ele mais calminho, canto outras para ele quando vou dar banho, brinco com ele que é a hora do Tibum. Ele fica alegrinho, pula bastante com aquela ‘É Tal de Poc Poc Poc’, do Patinho Tunga”, relata. Para ela, “os valores ensinados durante as oficinas pode ser evoluído quando deixar a Fundação.”

Nas aulas, prefere as atividades dedicadas às meninas: “Fiquei muito feliz de aprender a montar um chocalho e estou ansiosa para fazer os próximos instrumentos com panela. Vamos tocar samba.” Sua maior meta quando cumprir a medida socioeducativa é colocar seu pequeno na creche e trabalhar como cabeleireira, manicure, funções que já desempenhava e agora aprimora no curso profissionalizante que está fazendo, pelo menos, “até arrumar um bom emprego”.

Com os olhos baixos, mas de postura combativa, Silvia*, relembra os momentos mais marcantes do curso: “A coisa mais bonita que eu já fiz foi um livrinho para mandar de lembrança para casa sobre o meu filho. Colocamos marquinhas das mãos e dos pés dele.” De pele morena e longos fios pretos, bem lisos, a jovem desanima quando fala sobre saudade: “Sinto bastante falta da minha mãe e dos meus sobrinhos. De levar eles passearem no Parque do Carmo, [em Itaquera], caminhar, sentir a natureza de perto. Quero muito levar meu pequeno para conhecer. Nesse dia, vou tirar um montão de fotos dele se divertindo no gramado”, projeta.

O processo de confecção do livrinho, mencionado anteriormente pela interna, foi descrito por Thatiana, com os olhos marejados de emoção: “No semestre passado, fizemos um projeto que se chamou “Um Para o Outro”, no qual as meninas participaram de mais de dez atividades de vivência e em seguida registraram suas impressões.” Com as letras primárias, escreveram uma carta dedicada aos rebentos, além do significado de seus nomes. “Uma em especial me marcou muito – uma interna disse à sua pequena: ‘Filha, nós somos seres errantes, mas também seres muito inteligentes, porque aprendemos com os nossos erros. E hoje, prometo para você que quando sairmos daqui, a nossa vida vai ser diferente”, relembra.

A educadora se emocionou quando relembrou o que uma das mães desenhou, ao ser questionada para onde iria caso o carrinho da brinquedoteca fosse real: “Ela coloriu um circo e disse que este seria o seu destino com seu pequeno. E aquele lugar seria o lar dos dois, a sua profissão, o seu tudo. Achei que aquilo simbolizava uma liberdade imensurável, uma alegria, porque quando você está no circo, geralmente, tem essa sensação.”

No dia da entrega, um laço de fita e um plástico enfeitado foram utilizados para embrulhar o pedacinho de memória das meninas. “Fizemos uma capa, uma dedicatória. Naquele momento, senti que estava fazendo parte de algo muito especial. Ver elas folheando as páginas com o maior cuidado, rever o que tinham feito, os desenhos, as lembranças das vivências que elas gostariam de ter ao lado dos filhos”, narra a educadora.

A humanização ainda é um dos fatores mais deficitários do processo socioeducativo que, na maioria das vezes, é focado mais no âmbito punitivista do que na reinserção social do jovem infrator. “São muitos os motivos que os trazem até aqui. Mas acredito que ainda seja muito recorrente no pensamento da maioria das pessoas que estão inseridas neste campo o pensamento de punição, de castigo, porque ele errou”, elucida Thatiana. “Não estou aqui para julgar a forma, porém o que me faz presente aqui e em outras unidades há mais de uma década é a minha crença na humanização desses garotos. E a música trabalha isso como ninguém, resgatar neles o caráter mais humano, que foi deixado de lado. Fazer com que reflitam por si só através da melodia. Porque a música é isso, a sensação, seja de alegria, tristeza ou saudade. Eu acredito nessa semente de transformação que estamos semeando.”


O dia de florescer

Eu e a maioria da equipe não imaginávamos que naquele dia estaria acontecendo um evento super importante para a maioria das meninas da ala comum. Foi quando o convite surpreendeu: “Está acontecendo um desfile das internas na outra parte da Fundação. Você topa ver?”. Não pensei duas vezes e aceitei. Pelos corredores labirínticos da outra parte da unidade, grades e vigias a cada porta. Alguns enfeites e pinturas de garotas coloridas tentavam quebrar a frieza de um lugar que, para a maioria das que lá vivem, não se assemelha, nem de longe, com a própria casa.

Ao chegar, fui calorosamente recebida pelos funcionários que já estavam a postos para registrar o “Concurso Miss Primavera”. No meio de duas mesas de madeira, nos quais seus bancos acomodavam o público, formado por familiares e outras garotas de uniforme lilás, um tapete vermelho. A decoração era de borboletas penduradas nas lâmpadas. Equidistantes, grandes flores de borracha e papel crepon davam o tom do grande evento. Um velhinho careca, muito bem humorado, anunciava as ordem das modelos pelo microfone, que rompiam com seus longos coloridos ou brancos, doados pelas lojas de festas da “Rua das Noivas”, como é popularmente conhecida a Rua São Caetano, na capital paulista.

Agora vem a Ana*, que adora macarrão com molho branco. É a loira mais bonita do Guarujá”, chamava o idoso no microfone de um sistema de som improvisado para aquela ocasião. As meninas, que apresentavam grande variação de idade, não fugiam à regra da ala materna: eram, em sua maioria, negras. Quem, ao final de sua entrada pela passarela, dissesse a melhor frase sobre a estação mais bonita do ano, levaria consigo os sapatos de salto alto e o longo escolhido no dia que deixasse a Fundação.

Dizeres que rimavam sobre a beleza das flores e perfeição da criação divina foram interrompidos por uma homenagem surpresa. Uma das poucas meninas que desfilavam com vestido de noiva, confessou, aos prantos, para a mãe igualmente emocionada: “Mãe, a senhora sempre dizia para a gente que só damos valor para algo quando perdemos. E agora, que eu estou aqui presa, valorizo a minha liberdade”. Aplausos tomaram o refeitório, enquanto uma garotinha loira atrás de mim, de uns dois aninhos, provavelmente filha de uma das internas, obedecia às ordens da mãe e me mandava beijos com suas pequenas mãos.


*Todos os nomes das meninas que estão cumprindo medida socioeducativa na Fundação CASA foram alterados como medida protetiva prevista pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.


Fonte:
CLAUDIA
Por: Por Débora Stevaux
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